sábado, 5 de novembro de 2011

Primeiro encontro

Naquela época, a vida era extremamente chata e monótona. Clarisse, minha única amiga, havia acabado de ficar noiva, eu tinha acabado de ser despedida mais uma vez e outra editora negara a publicação de um livro meu. O tempo parecia que não passava de jeito nenhum e o relógio ficava fazendo aquele tic-tac irritante na parede. Eu joguei sem pensar uma bota nele uma vez, daí tive que pagar o concerto, mas ele bem que mereceu. Eu passava os dias pedindo aos ventos para que levassem minha mensagem à algum lugar, trazendo uma nova inspiração consigo e tirando-me daquela vida monótona. Enquanto isso ficava em frente à minha mesa escrevendo livros e corria atrás de outros empregos. Para me distrair, comprava botas quando sobrava dinheiro, pois amo botas.

Demorou muito para que minhas preces fossem atendidas. Eu achava que aquela construção que se erguia perto da prefeitura seria apenas mais uma edificação, mas não era só isso. O vento soprava e eu não percebia que ele queria me dizer que aquela era a resposta. Meu pedido estava prestes a se tornar realidade! E isso soa muito meloso e eu quero que ignorem. Minha ficha de mulher fria tem que continuar em pé.

Quando a construção finalmente ficou pronta, eu logo recebi a melhor notícia dos últimos meses. Gritei para os ventos um grande: “obrigada” e me arrumei da melhor maneira que pude, usando até mesmo um daqueles vestidos que eu odeio. Eu participaria de uma entrevista de emprego naquela livraria recém construída e que seria inaugurada em poucos dias.

Quando saí de casa, quebrei vários copos, quase arranquei a maçaneta, fiz mais um monte de atrapalhadas pelo caminho, o que, sinceramente, já estou bastante acostumada, mas consegui chegar inteira. Isso não muda o fato de que eu estava extremamente afobada. Vocês tem que entender que trabalhar em um livraria é o sonho de qualquer escritor! Ahn... Para falar a verdade o maior sonho de um escritor é ver seus livros publicados e fazendo sucesso, mas trabalhar em uma livraria é o segundo! Ahn... Quer dizer, isso se você estiver trabalhando como uma garçonete.

Enfim. Eu queria trabalhar lá.

Entrei em uma pequena fila dentro da loja, que já estava cheia de estantes de livros, onde uma mulher de curtos cabelos castanhos estava em primeiro, em seguida vinha um homem robusto, depois uma senhora magrela e levemente corcunda. Quando finalmente todos entraram e saíram, ouvi a voz que sempre chamava o próximo e era a minha vez. Entrei na sala correndo, bati a porta com força sem querer atrás de mim e despenquei em cima da cadeira.

"Não. Não. Não! Porque eu tenho que fazer uma droga dessas justo na minha entrevista de emprego? Criador, você não entende que essa é a única oportunidade? Porque não tira de mim essa tendência destrutiva? Hmpf".

Apesar do dilema interno, levantei-me tão rápido que o entrevistador nem teve tempo de me ajudar.

— Você está bem? - perguntou impressionado um homem jovem de voz impressionantemente calma e polida.

Respirei fundo e olhei para frente. Já abrira um sorriso de "está tudo bem" quando me deparei com sua aparência. Fiquei paralisada.

— Sente-se — pediu ele, apontando para a cadeira que eu derrubara e já pusera de pé. Apesar de tentar parecer sério por ser o dono, não conseguia esconder um sorrisinho de divertimento.

Sentei-me cuidadosamente, desviando os olhos dele por não saber muito bem como reagir. Parte de mim gritava: "Ele é muito estranho!" e a outra rebatia: "Mas ele é lindo!". E então o duelo continuava com: "Mas você não se importa com essas coisas! Relacionamentos são para gente fraca!" e a outra: "Mas olhe para ele! Tão singular e é dono de uma livraria!", "Lidiana. Lidiana. Você está se esquecendo de que ninguém gosta de você?", "E se ele tiver vindo de fora?", "Não! Logo ele vai ouvir que você é uma bruxa, então...".

Ele interrompeu minha guerra interior:

— Tem certeza de que está tudo bem? — perguntou, agora um pouco mais preocupado. O sorriso desapareceu de seus lábios finos e rosados. Acho que eu não demonstrei que estava maravilhada com sua aparência. Mas também, como não ficaria? Ele era loiro, bastante magro — o que eu não deveria ter gostado, mas nele...! — e o cabelo caia-lhe comprido sobre metade da face. Para que? Sinceramente! Mas isso não excluía o quanto aquele olhos verde do outro lado reluzia por trás dos óculos e o quanto ele contrastava-se com sua pele pálida. Todos os seus traços denunciavam um homem inteligente, confiante, confiável, carinhoso, bondoso, firme em suas decisões e cheio de muitas outras qualidades. Ele parecia, acima de tudo, autêntico. Algo que faltava demais em todos os homens rudes e mesquinhos que existiam no mundo. Meu pai era um deles. Aquele idiota.

Apesar de não me lembrar de algum dia ter estado tão nervosa, sentia minhas mãos suarem e o coração bater acelerado. O ar parecia até rarefeito de tanto que eu não conseguia respirar direito.

— Estou bem sim - respondi, tentando ficar calma. Fiz de tudo também para não ser grossa, o que era instantâneo quando eu me afobava demais. Eu não era tímida! Odiava aquela sensação.

— Qual o seu nome? — perguntou ele, contente ao perceber que eu voltara ao "normal".

— Chamo-me Lidiana, ahn.. Senhor.

Ele riu descontraidamente.

— Não precisa me chamar de Senhor. Também não precisa ficar tão nervosa. Tenho certeza de que você vai se sair muito bem.

"Ele está certo, Lidiana. Você não pode ficar nervosa!" disse uma vozinha no fundo da minha cabeça.

Ela tinha razão. Só que os olhos dele estavam fixos nos meus! E aquele era o emprego que eu queria... Mas agora será que era... Por causa da monotonia ou daquele par de olhos esmeralda tão brilhantes? Eu definitivamente não me importava com homens idiotas! Mas, ainda assim...

— Desculpe-me por estar agindo estranho, eu quero muito esse emprego - falei com sinceridade.

— E por que o deseja tanto? — perguntou ele, estudando-me.

— Eu gosto de livros, gosto de escrever e gostaria de trabalhar em um lugar como este. Eu nunca consegui publicar um livro porque escrevo sobre feiticeiros e, bem... Eu não digo que eles são maus. Talvez seja o melhor, pois a Inquisição começaria a questionar se eu sou ou não uma e isso não seria muito legal. Só que... Ainda assim...!

— Mas por que você escreve sobre isso? — perguntou ele, curioso. Seus olhos ficaram um pouco mais sérios e ele me estudou com cautela e curiosidade.

Fiquei com medo de ter me denunciada com a bruxa esquisita da cidade, mas respondi:

— Eu sinto que eles nunca foram tão maus... Só foram... Mau compreendidos - desviei os olhos, soltando um suspiro. Tudo bem. Se minha imagem tivesse sido destruída. Eu estava sendo sincera e sendo eu. Sempre fora assim e nunca me importara, mas naquele momento me importei, porque jamais imaginei que alguém poderia me encantar tanto. Até porque não acredito em amor a primeira vista, mas algo dentro de mim enxergou a bondade dele e acho que isso é tudo o que faltava em todos que eu sempre conheci.

Quebrando todas as minhas expectativas, o rapaz abriu um sorriso e seus olhos brilharam de forma intensa. Eu não entendi porque ele estava tão feliz, ou talvez eu tenha achado que ele estava feliz, mas agora isso não importa.

— Você é a pessoa mais interessante que veio fazer a entrevista hoje — disse ele em meio àquele sorriso maravilhoso. — Eu não entendo como alguém como você se contenta apenas com um emprego tão simples como esse, mas... Eu jamais lhe negaria este cargo. Aliás, eu jamais poderia negá-lo a uma escritora, pois eu também sou poeta e me fascino por aqueles que tem o mesmo dom que eu. Desde criança fui ensinado com música, pois é uma tradição em minha família, mas até mesmo minha mãe desistiu de insistir depois de um tempo, pois eu não conseguia progredir. Só depois ela descobriu que eu tinha o dom de uma das artes mais bonitas. — ele abaixou a cabeça meio nostálgico e seu sorriso era angelical. Jamais imaginei conhecer um homem tão doce.

Quando comecei a abrir um sorriso apaixonado que eu odeio admitir que abri, ele ergueu os olhos e tentei fazer a cara mais natural que pude. Não sei qual foi o resultado para falar a verdade. Parecia que minhas bochechas tremiam e eu queria muito ir embora.

— Através da escrita encontramos a janela oculta dos sentimentos, não concorda comigo? — disse ele.

— Sim... — respondi, meio que sem saber o que dizer. — Jamais conheci um escritor como eu. Não acho que eu tenha todo esse dom que você tem, mas eu me esforço.

Ele negou com a cabeça e continuou a me olhar nos olhos.

— Tenho certeza de que você é muito melhor do que eu imagino. Pode ser só um palpite errado, mas quando olhos para você, vejo um interior sensível que você tenta esconder a todo custo por viver machucada demais.

Eu até teria me espantado, mas já estava tão espantada com ele que não tinha como isso aumentar. Ninguém nunca percebera isso. O modo como eu começara a não me importar porque, na verdade, me importava. O tanto que eu já fora humilhada quando criança e tivera que aprender a não ligar mais. Sempre correndo do que havia mesmo dentro de mim... Essa parte que aprendera a ser forte estava extremamente irritada por se ver tão violada, mas algo que eu não me lembrava há anos se mexeu. Uma centelha de minha infância que tenho certeza que jamais voltará, mas que era sensível e chorava assim como todas as outras. Algo que o mundo e, principalmente meu pai, destruíram.

— Eu... — tentei dizer, mas ele me interrompeu. Acho que percebeu que era um assunto complicado.

— O emprego é seu. Eu só precisava de três funcionários e já encontrei mais dois que amam literatura — explicou.

Fiquei meio desiludida com o fato de não ter sido única e especial e entrei em fúria interna por ter me importado com ele.

Quase como se lesse meus pensamentos, ele acrescentou:

— Mas nenhum deles pareceu tão bom quanto você.

Odiei aquela parte de mim que que gritou como uma garotinha. Reprimi ela, mas não consegui conter o sorriso exagerado.

— Prometo que você não vai se decepcionar.

Ele se levantou e estendeu a mão para mim, rindo do quanto me empolguei. Tentei ficar séria. Em outros momentos era fácil. Eu tinha que trabalhar melhor isso... Nunca me vira em uma situação como aquela. Com um bom treino voltaria a agir com ironia até perto dele. Parte de mim não queria, mas eu acabaria cedendo.

— Tenho certeza — sorriu ele. Achei que estava meio envergonhado, mas provavelmente vi coisas. Sou péssima em entender os outros. — Além de tudo, uma boa amiga.

— A propósito... Passei toda a entrevista sem perguntar seu nome... — disse ao apertar sua mão. Ela era morna e sua pele era macia como algodão.

— Achei que não ia perguntar — riu ele. — Eu me chamo Jarret Moonlight, mas pode me chamar de Jarret.

— Prazer em conhecê-lo.

Ele me conduziu até a porta da livraria.

Apesar de ter dito que o emprego seria meu e de outras duas pessoas, não dispensou os demais. Ele não era um homem rude. Jarret era até gentil demais.

— Começaremos daqui a dois dias. Vejo você às sete horas, está bem? — disse ele por fim.

— Estarei aqui.

Apesar de não querer, com uma última despedida, fui embora. Enquanto me afastava, o coração foi voltando lentamente ao normal, a afobação foi passando e senti-me novamente a Lidiana de sempre. A irônica, brincalhona e que não se importa com nada e com ninguém. Alguém inatingível. Não sei se senti falta da sensação ou se não, mas isso não alterou em nada a minha vontade de vê-lo de novo.

Sussurrei bem baixinho para o vento quando eu já estava muito distante:

— Mais uma vez vocês me ouviram. Acho que não poderei pedir algo por muito tempo, pois esse foi o melhor presente que vocês já me deram.

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